14.10.07

Para que servem hoje os exames?

Todos os anos, no final do ano lectivo, o país entra de férias e os jornalistas ficam com escassos assuntos para abordarem. Entretanto descobriram um novo filão, inesgotável pelo interesse que revela junto da opinião pública: as classificações dos exames de Matemática.

Os meios de comunicação social aproveitam a ocasião para deitar um olhar, sempre superficial e inconsequente, sobre o ensino da Matemática, alguns comentadores de serviço bem posicionados nos lobbies dos media aproveitam a oportunidade para ganhar mais algum tempo de antena e alguma visibilidade, sempre esporádica e igualmente inconsequente, e o Ministério da Educação naturalmente procura explicar na mesma comunicação social as causas da melhoria ou não desses resultados, nunca pondo em causa naturalmente o próprio sistema de exames” (Matos, 2007).

Por razões que andam afastadas do debate público, “existe uma fé generalizada na bondade dos exames escolares em todos os níveis de ensino” (idem). Acredita-se mais na pretensa objectividade do resultado das medições da aprendizagem quando efectuadas através de um exame escrito, com restrições de tempo, e numa situação formal anónima, estranha ao processo de aprendizagem, do que numa avaliação prolongada no tempo e decorrente do conhecimento profundo do aluno – conhecimento com margens de incerteza, evidentemente, como é próprio do processo de construção de qualquer conhecimento.

O valor que atribuímos à avaliação que se faz nos exames deriva em grande parte de estarmos habituados a conformarmo-nos com os seus resultados, e da necessidade de uma segurança mínima dos alunos contra o arbítrio dos seus mestres. A integração de cada classificação no conjunto mais amplo da turma, do curso, da escola, do ano escolar, etc. constitui redes de equivalência que simultaneamente as confirmam e lhes conferem significado. Por exemplo, um 14 ou um 16 dizem pouco a um aluno por si mesmos, mas ele concluirá facilmente que se encontra muito bem remunerado com 12 se reconhecer que outros colegas que tiveram melhor desempenho foram classificados com 14, isto é, o que confere significado à classificação é a sua integração numa relação de equivalência. Nos exames sucede o mesmo, havendo a possibilidade de recurso para corrigir a excessiva severidade do corrector. Não interessa aqui discutir “em que percentagem” cada aluno compreendeu o teorema de Pitágoras, mas que os exames e os testes realizam essa maravilha de quantificar o não mensurável, lá isso fazem! Matos recorda que “ao assumir-se, erradamente, o rigor da quantificação esquece-se que se trata apenas da aplicação de modelos matemáticos que podem ser úteis ou não para um dado fim e que podem traduzir melhor ou pior uma dada situação” (ibidem).

A simples expressão das classificações numa escala numérica, de 0 a 20, transmite por si uma ideia de maior rigor, clareza e objectividade, que as apreciações qualitativas. A associação cega dos números à Matemática, às ciências, ao suposto rigor e à objectividade é um mito sociocultural. Que utilidade tem para os alunos um 4 ou um mau? Eles achariam interessantes sim, observações técnicas que lhes permitissem corrigir os erros específicos da prova, pois assim aprenderiam efectivamente, e posteriormente obteriam melhores resultados. Cada prova poderia oferecer uma oportunidade de avaliação formativa.

Apesar de não ter utilidade para os estudantes, a expressão das classificações na escala de 0 a 20 tem utilidade para o sistema, pois concilia o princípio da escola democrática aberta a todos os estudantes com o princípio da hierarquia que impõe uma selecção prematura dos estudantes alegando a escassez de recursos. Enquanto pelo primeiro princípio a escola seria para todos, pelo segundo seria um privilégio acessível aos melhores, e é neste contexto que a avaliação traduzida numa escala numérica, utilizando preferencialmente os testes como instrumentos de avaliação e os testes, e sendo os exames finais a sua jóia da coroa. É através do campeonato dos exames que se tem decidido quem entra ou não no Ensino Superior, designadamente em Medicina, que é a área que têm mantido médias mais elevadas. Com a redução dos obstáculos à mobilidade do trabalho no seio da União Europeia não faz sentido impedir os nossos estudantes de se formarem para assegurar mercado (a preços elevados) à classe médica estabelecida, pois já temos experiência de atendimento por espanhóis e por oriundos de leste.

Em resultado da excessiva importância atribuída às tarefas de avaliação no Ensino Secundário, são menosprezados outros aspectos da relação pedagógica. Quando passar no exame se torna o único objectivo, estudar para exame é o método, que vai prevalecer sobre todos os outros. Qualquer tarefa que reflicta alguma inovação pedagógica, logo mais consumidora de tempo, é facilmente abandonada com o argumento que “isso não sai no exame”, portanto não interessa. Investigações matemáticas, modelação matemática, projectos, história da Matemática, etc. O “método” de estudar para exame (des)organiza as actividades pedagógicas ao longo de todo o ano, porque a forma mais eficaz de se preparar para os exames é fazer muitos exercícios semelhantes “aos que podem sair no exame”, chegando-se frequentemente ao limite em que os alunos até conseguem responder, mesmo sem terem lido convenientemente as questões que lhes são colocadas no enunciado! Isto é, este método em vez de contribuir para o desenvolvimento das capacidades cognitivas dos alunos, transforma as tarefas escolares em trabalho de execução. Designadamente em Matemática, o “treino” em determinado tipo de questões é frequentemente defendido, e certamente que a destreza nalgumas rotinas matemáticas é absolutamente indispensável para responder a determinadas questões mais complexas. Saber quais são as rotinas fundamentais que exigem maior destreza, das que apenas são recordadas em momentos excepcionais distingue os melhores alunos dos seus colegas, e também faz parte da arte de ensinar que caracteriza os bons professores, porque desde que dotado com os conceitos chave o aluno consegue resolver os problemas.

O alegado insucesso escolar a Matemática justifica a multiplicação dos Planos de Acção para a Matemática. A Ministra da Educação, Maria de Lurdes Rodrigues acredita tão convictamente no seu Plano de Acção para a Matemática que afirmou que ”pela primeira vez o país associará os resultados não apenas à performance dos alunos, mas também ao trabalho das escolas e dos professores”. Fez esta declaração a propósito dos exames nacionais do 9º ano, no final de uma reunião de balanço do primeiro ano do Plano da Matemática, a 11 de Maio de 2007 (PÚBLICO).Tem certezas tão inabaláveis que escreveu que o “Plano de Acção para a Matemática registou balanço positivo no primeiro ano de execução”(http://www.min-edu.pt/np3/668.html), fez um balanço positivo do seu plano, apesar de ter expulsado da respectiva comissão de acompanhamento a Associação dos Professores de Matemática! (http://www.apm.pt/portal/index.php?id=68357). Certamente que se julga uma visionária, portanto pode dispensar aqueles que trabalham quotidianamente com os estudantes!

Não sendo visionária, estará a manipular deliberadamente as estatísticas e os espíritos, porque é bastante mais simples martelar os números do que mudar a realidade. Por exemplo, fixou arbitrariamente que a percentagem de classificações negativas deveria diminuir 5% no exame nacional de Matemática do 9º ano. Porquê 5%? Se é só para poder dizer que atingiu o objectivo, os professores também sabem que além do trabalho legítimo, há métodos mais simples de obter o mesmo resultado, pela maior facilidade das questões propostas ou pela flexibilidade dos critérios de correcção, por exemplo.

Olhando para a Matemática, da perspectiva da 5 de Outubro, o exame será sempre considerado um instrumento excelente, porque tem um carácter unificador, na medida em que permite estabelecer uma relação de equivalência entre os diversos alunos e as escolas. Designadamente desde o ano lectivo 2000/01 os órgãos de comunicação social têm publicado os resultados dos exames e as classificações internas das escolas secundárias, apresentando os dados de forma simplista e desenvolvendo “teorias” espontâneas.

Os dados foram em geral apresentados como uma simples seriação das escolas segundo as classificações nos exames, acompanhada de uma ou outra informação, é certo, mas no fundamental de acordo com o pressuposto de que os resultados nos exames traduzem unicamente o desempenho das escolas e dos professores. Ora tais resultados dependem igualmente do meio sociocultural de origem dos alunos, um fenómeno incontroverso e adquirido desde há décadas no âmbito da sociologia (ME/UNL-FCSH, 2002:3).

No quadro das explicações jornalísticas popularizou-se aquela que designei por mito dos 2 valores, que consiste em considerar normal essa diferença CIF-CE. Esta concepção jornalística de interpretação dos resultados dos exames levou o ex-Ministro da Educação, David Justino, a prometer investigar disparidades entre as notas internas e exames (http://pascal.iseg.utl.pt/~ncrato/Recortes/Justino3_Publico_20021006.htm). Num trabalho anterior já se demonstrou que contrariamente ao que se afirma nos jornais, esta diferença é maior nas disciplinas de ciências exactas que nas disciplinas de ciências literárias. Mais ainda, a disciplina que apresenta maior diferença CIF-CE até corresponde àquela que apresenta maior fiabilidade na correcção das provas de exame, Biologia, (NETO, 2005:203), desfazendo completamente o mito dos 2 valores.

É necessário perceber que o conhecimento, a cultura, a organização escolar não são neutros, sem intencionalidade, assépticos, produtos acabados que existem independentemente do mundo social. Mas ninguém poderá esperar que o Ministério da Educação alguma vez tome a iniciativa de questionar as avaliações realizadas em exames. É necessário que os professores se mexam! Afinal, passando o 12º ano a integrar a escolaridade obrigatória, e encontrando-nos nós numa fase em que o Ensino Superior já teve que aprender a “pescar” os alunos do alunos do Ensino Secundário, em vez de os seleccionar, para que servem hoje os exames?



Recorde-se que as classificações de exame apenas contam em 30% para a classificação final, contribuindo as classificações internas de frequência em 70% para a classificação final, de acordo com a legislação em vigor (http://www.min-edu.pt/np3/299.html), isto é:



Como só se podem ir a exame alunos que tenha obtido 10 na classificação interna, isso significa que apenas reprovam os que tenham obtido em exame menos de 8,3 valores, pois mesmo com esta classificação a fórmula assegura-lhes a passagem à disciplina com10 na classificação final. Isto é, apesar da ampla polémica em torno dos exames, a importância destes para a classificação final é menor do que parece. Repare-se que se o aluno for a exame com 11, basta-lhe ter 5,9 para passar, com 12 basta-lhe 3,7, com 13 precisa de 1,4, e com 14 na CIF é impossível reprovar, mesmo que obtenha um 0 no exame!

A observação empírica permite verificar que são escassos os casos dos alunos que lutam até ao final do 3º período sem obterem pelo menos um 10, mas particularmente em Matemática, as negativas muito baixas em exame são frequentes. 735/Matenmática B, conjuntamente com 615/Física e 715/Fisíca e Química A constituem o conjunto das disciplinas com classificações mais baixas. Consultando o relatório do Júri Nacional de Exames de 2007 (http://www.dgidc.min-edu.pt/jneweb/relato.htm) verifica-se que além destas disciplinas também 132/Latim e 317/Francês registam médias de exame inferiores a 8 valores, mas nestas o número de inscritos não é significativo (38 e 5, respectivamente).

Quando alguém não terminou o ensino secundário porque lhe falta apenas uma disciplina, geralmente até advínhamos a disciplina em falta. Matemática! Em Física ou Química os alunos que não conseguiram transitar nunca são em número suficiente para formar uma turma de repetentes. Esse é outro dos “privilégios” da Matemática! Os testes classificam o desempenho escolar dos alunos, mas a frequência e coerência das classificações reflecte-se na avaliação das suas qualidades pessoais, e uma forma de demonstrarem a si próprios que não se resignam perante as adversidades da vida pode passar pela fuga ao veredicto professoral, desistindo da Matemática...



Sem compreender que o essencial da avaliação passa pelas relações estabelecidas entre professores e alunos, o ME insiste em mecanismos integradores das práticas pedagógicas em pretensas aulas semelhantes, visando atingir a equidade entre os que se submetem ao mesmo exame. Desenvolvendo a lógica industrial típica da justificação dos exames, o ME "disponibilizou, a professores e alunos, um conjunto de instrumentos que assegurem, não apenas a avaliação sumativa externa, mas igualmente a orientação e a preparação para os exames nacionais, proporcionando elementos de estudo e de aprendizagem adequados aos vários níveis de ensino". Em 2006/07 foram criados os testes intermédios em Matemática A, e durante este ano lectivo irão ficar disponíveis testes para outras disciplinas. Na mesma lógica criaram a sebenta electrónica Projecto 1000 Itens (http://www.gave.min-edu.pt/np3/15.html), que constituirá a versão moderna do Palma Fernandes, a acrescentar a toda a parafernália de publicações com exercícios de exame resolvidos. No fundamental a receita é simples: quanto mais exercícios fizeres melhor! O insucesso apenas pode resultar de treino insuficiente, pelo que as tarefas de remediação consistem sempre em mais exercícios! Não se contesta a necessidade do trabalho escolar para aquisição do conhecimento, mas alerta-se para um fenómeno observado em escolas do concelho de Sintra, que terá ocorrido noutros locais. Para ficarem melhor posicionadas nos rankings de escolas, estas resolveram utilizar horas do crédito global para oferecer mais uma hora lectiva por semana às turmas de Matemática do 12º ano, à custa da redução das actividades extra-curriculares (NETO, 2005:222). Certamente que nenhum político, teórico ou pedagogo defenderá a substituição de actividades lúdicas por horas de “preparação para os exames”!

12.10.07

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