28.12.05

Quem sabe programar calculadoras e computadores?

Augusto Viana observa que a utilização das calculadoras não prescinde da sua programação, dando a cada utilizador a possibilidade de elaborar as suas próprias rotinas de cálculo ou gráficas. Ora, não há uma tradição de programação de calculadoras (ou de computadores) associada ao ensino da Matemática no ensino secundário e, mesmo no que respeita à sua própria formação, muitos professores têm, quando muito (na Universidade) uma cadeira de programação – BASIC, PASCAL ou outra, (Viana, 2000:25) sentindo-se por esse motivo inibidos de activar a “misteriosa tecla PROG” (ibidem). [Entre parêntesis: Porque não se realizaram acções de formação com vista a dotar os professores destas competências?]
Os manuais das calculadoras apresentam como exemplos assuntos respeitantes ao ensino superior, procurando, deste modo, evidenciar as inúmeras potencialidades das suas máquinas (ibidem), constituindo outro factor inibidor por parte dos professores e dos alunos. Estes raramente têm paciência para consultar exaustivamente o manual da calculadora e, quando o tentam fazer, deparam com essa barreira – assuntos que não conhecem teoricamente e programas tão complexos que, até os mais pacientes e brilhantes, mesmo que o quisessem, seriam incapazes de decifrar (ibidem). Porque será que a programação das calculadoras é uma tarefa abandonada pela grande maioria dos professores e dos alunos do ensino secundário? Será difícil e desinteressante?! Acresce que para tirar proveito das calculadoras, as primeiras tarefas de programação deverão começar no 10º ano, não deixando tudo para o 12º ano, quando já será tarde. Mais. Para que os alunos aprendam a programar, deverão começar com programas muito simples, que os motivem e lhes permitam ir conhecendo as instruções de programação (ibidem). No início, provavelmente, em resultado da simplicidade dos problemas propostos e do desconhecimento da linguagem de programação, será até mais simples resolver os problemas sem o recurso à calculadora, até que se adquiram as rotinas indispensáveis a uma utilização eficaz, permitindo aos “matemáticos puristas” fazer chacota dos colegas que utilizam as calculadoras mais frequentemente. Provavelmente até terão razão ao referirem-se às máquinas como uma moda, pois até deixarão de ser necessárias quando se banalizar a utilização dos computadores portáteis, hoje já comuns no ensino secundário no caso dos alunos com necessidades especiais.

Ao nível do 12º ano as diferentes concepções da Matemática dificilmente terão qualquer consequência sobre as práticas de ensino

Ao nível do 12º ano as diferentes concepções da Matemática dificilmente terão qualquer consequência sobre as práticas de ensino, porque “o exame torna-se um objectivo, o que vem para exame um programa, o ensino da matéria para exame um método”, na expressão de Hans Freudenthal, citado por Paulo Abrantes (1990). Certamente que em anos anteriores as diferenças serão mais marcadas. Os especialistas em “Ciências da Educação” preconizam um ensino de natureza construtivista, assumindo um papel de “educador, produtor de situações de aprendizagem, animador pedagógico, dinamizador de projectos, investigador, que gere recursos na concepção de variadas situações de aprendizagem, regula e aperfeiçoa a sua própria actividade de ensino” (Rafael, 2003). A diversidade das situações de aprendizagem que propõem, leva-os a considerar testes e exames, instrumentos redutores do processo de aprendizagem, “cada vez mais desajustados para avaliar as competências de nível superior” (ibidem). Desejariam implementar estratégias de ensino inovadoras, mas possuindo fracos conhecimentos de informática, a insegurança inibe-os de muitos desafios. As críticas metodológicas dos “matemáticos” aos especialistas das “Ciências da Educação” podem assumir grande violência verbal, mas observando que privilegiam os testes escritos como principal instrumento de avaliação, supostamente objectivo e rigoroso, adivinha-se que as suas propostas metodológicas serão relativamente pobres. Desenvolvendo a sua argumentação a partir do elogio ao raciocínio analítico, às capacidades de abstracção do “pensamento matemático”, torneiam elegantemente as possibilidades hoje oferecidas pelas tecnologias como se a sua utilização fosse uma moda passageira, desprezando computadores e calculadoras como reles quinquilharia. Também têm reduzidos conhecimentos de informática, mas separando a Matemática das tecnologias da informação, sentem-se tanto mais “matemáticos” quanto mais ignoram as tecnologias. Isto é, ou por insegurança ou por desconsideração pelas tecnologias, estas são geralmente postas à margem do processo de ensino. Independentemente das suas concepções de ensino da Matemática, os docentes sabem que as tecnologias tornariam a disciplina mais interessante e “apetecível”. Crê-se que a utilização dos novos recursos se reduz ao mínimo, exactamente porque os professores desejarão ocultar os défices de formação que sentem.

Quanto à sua formação inicial os problemas poderão observar-se em docentes que não sejam portadores de uma licenciatura em Matemática

Quanto à sua formação inicial os problemas poderão observar-se em docentes que não sejam portadores de uma licenciatura em Matemática, mas noutras áreas, que tiraram partido da escassez de profissionalizados verificada na década de 80 e dos mecanismos de acesso à carreira então criados, designadamente através do sistema de profissionalização em serviço. Leccionam hoje a disciplina no ensino secundário numerosos professores oriundos das licenciaturas em engenharia, que em princípio não se encontrarão tão bem preparados para a função. A formação contínua deveria ser sido utilizada para colmatar as suas lacunas em Matemática. Porém, uma vez que os docentes escolhem livremente as acções que realizam, o que provavelmente terá sucedido é que cada qual as terá realizado nas áreas onde se sente mais à vontade. Assim, a formação contínua nunca foi utilizada para suprimir quaisquer falhas resultantes de uma formação inicial deficiente. Isto é, as escassas acções de formação em matemática terão sido frequentadas exclusivamente pelos licenciados em Matemática, enquanto que os licenciados em engenharia terão realizado preferencialmente acções de formação em informática ou noutros domínios, mas nunca em Matemática. Se isto efectivamente se verificar, significa que os défices na formação inicial persistirão ao longo da carreira, por maior que seja o investimento na formação contínua.

A calculadora gráfica e as diferentes concepções de ensino da Matemática

Entre os recursos acima referidos, certamente que a calculadora gráfica é o mais comummente utilizado. O programa torna-a um recurso obrigatório, e nos exames saem questões às quais não é possível responder sem ela. Deste modo, a questão nunca se poderá colocar em termos de professores que utilizam versus aqueles que não utilizam a calculadora. O que os distingue é o doseamento da sua utilização, mais frequente entre os “especialistas das Ciências da Educação” relativamente aos “matemáticos”. A frequência com que se utiliza este recurso é importante porque tem consequências “sobre o que se ensina e na forma como se ensina. Relativamente aos conteúdos matemáticos, podemos repensar o papel do cálculo e da demonstração, das múltiplas representações em Matemática e da relação entre a Matemática e a realidade. Em termos de ensino, uma menor ênfase no cálculo permite explorar situações envolvendo níveis cognitivos mais elevados” (Fernandes, 1998:43), defendem os especialistas de “Ciências da Educação”.

O que os “matemáticos” contestam é o abuso da utilização das calculadoras, sugerindo que “seria interessante medir quanto a exagerada utilização e as concessões que se fazem às máquinas pelas suas limitações e pelos resultados aproximados, no decorrer de uma aula, estão formando espíritos menos rigorosos, menos exigentes e mais preguiçosos, tanto por parte dos alunos como dos professores” (Albuquerque, 1998:140). Contrapõem que a calculadora não permite explorar níveis cognitivos mais elevados, uma vez que a máquina nos conduz no sentido inverso ao da abstracção. “O nível de compreensão não aumenta pelo galopar sobre questões cuja resposta nunca envolve trabalho concreto. Ao menos recorde-se que a calculadora é estranha à assimilação de um raciocínio matemático e nenhuma tecla ou gráfico oferecidos como que por magia substituem o pensamento e a dedução lógica” (ibidem).

A calculadora permite resolver problemas que sem a mesma não seriam resolvidos, mas simultaneamente também permite verificar de forma “artesanal” soluções às quais se poderia chegar com maior formalismo. Isto é, em Matemática o que conta não é apenas encontrar o “resultado” certo, mas também o “caminho” percorrido, isto é, o método adoptado. Por exemplo, suponha-se que o problema consiste em encontrar o máximo da função y = -x^2 + 50x. A representação gráfica da função sugere ao aluno que esta é crescente até 25, e decrescente a partir desse valor. Uma “demonstração artesanal” que os alunos frequentemente apresentam consiste no cálculo do valor da função para valores próximos do máximo, como se ilustra na tabela abaixo.

Esta solução fere inevitavelmente os matemáticos puristas, que considerarão muito mais elegante calcular a primeira derivada de y relativamente a x, e igualá-la a zero, isto é:
y’ = -2x + 50
De -2x+50=0 resulta x=25. E só consideram a prova de que se trata de um ponto máximo após a confirmação do sinal negativo da segunda derivada, y”= -2. O valor da “demonstração artesanal” dependerá da concepção do ensino da Matemática. Um purista colocará um traço por cima do exercício, mas um professor que valorize a descoberta considerará que o problema foi resolvido. Sabe-se que parte das dificuldades da Matemática resultam da sua própria conceptualização. Observa-se que a formalização nesta disciplina não é um problema específico do ensino, referindo como exemplo o teorema das quatro cores, um problema de formulação muito simples:

Dado um mapa plano, dividido em regiões, quatro cores chegam para o colorir, de forma a que regiões vizinhas não partilhem a mesma cor.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Teorema_Das_Quatro_Cores

Constitui desde 1852 um quebra-cabeças para os matemáticos, apenas tendo recebido propostas de demonstração mais satisfatórias com recurso a computadores. Lurdes Sousa, professora do Instituto Politécnico de Viseu, questiona se “será possível encontrar uma demonstração cujos cálculos subjacentes tenham uma dimensão humanamente atingível sem a ajuda de computadores?” (http://www.ipv.pt/millenium/Millenium24/12.pdf). Se as exigências conceptuais criam barreiras aos próprios matemáticos, não admira que constituam um obstáculo para os alunos. Certamente que as questões objecto de controvérsia entre os “matemáticos” e os especialistas de “Ciências da Educação” no quotidiano escolar serão incomensuravelmente mais simples de resolver que este teorema. Mas como se traduzirão estas disputas no quotidiano escolar? Que concepções do ensino da Matemática predominam? Será possível impor concepções de ensino pela simples alteração dos programas? É a formação inicial dos professores que determina predominantemente as suas concepções? A formação contínua contribuirá para superar eventuais défices da formação inicial? Supõe-se que a resposta a estas questões permitirá esclarecer melhor o debate sobre a educação.

O modo como é leccionado o programa de Matemática não regista consenso

O modo como é leccionado o programa da disciplina não regista consenso entre os professores. Armando Machado e Luís Sanchez, professores do Departamento de Matemática da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, são os coordenadores científicos do REANIMAT, Projecto Gulbenkian de Reanimação Científica da Matemática no Ensino Secundário. Não propõem um programa alternativo ao actual, mas sim uma abordagem mais formal da disciplina, pois do seu ponto de vista “as indicações metodológicas têm contribuído para promover uma visão empobrecida e descaracterizada da Matemática” (http://www.ptmat.fc.ul.pt/~armac/Reanimat/). Este projecto reúne “matemáticos” que se insurgem contra os “especialistas das Ciências da Educação”. Luís Sanchez criticou mesmo o actual programa afirmando que “a sua versão final não ultrapassou a fase de rascunho, com redacção descuidada e agravada com a inclusão de erros evidentes e graves” (Sanchez, 1998:82). Na sua perspectiva “o descalabro atingido pela educação matemática no nosso país” tem sido o resultado da “política para o Ensino Secundário que vem a ser seguida de há uns bons anos até ao presente. Na formação inicial, nas acções de formação de docentes, e na tomada de decisões estruturantes para o formato do ensino tem vindo a ser conferido um peso crescente, sem dúvida excessivo, a especialistas de “Ciências da Educação”, e essa proeminência não tem sido suficientemente temperada com a intervenção de matemáticos (em parte por desinteresse destes, há que reconhecê-lo). As consequências estão à vista: criou-se uma pseudo-cultura matemática que é receptiva à secundarização de conteúdos científicos e que valoriza colecções de banalidades e até patéticas exibições de ignorância, desde que disfarçadas de ‘inovadoras’ e ‘pedagogicamente correctas’ de acordo com a ortodoxia do discurso actualmente dominante entre os profissionais da educação” (ibidem).

Um entusiasmo momentâneo pelas tecnologias, na redacção dos programas de Matemática

As tecnologias da informação mudaram o próprio conceito de aprendizagem e de ensino. Os professores sabem que o ensino do futuro não se fará sem os computadores, mas isso não os impede de lhes oferecerem resistência. Nuns momentos a reflexão sobre as suas actividades indicar-lhes-á que deverão esforçar-se por fazer maior utilização da informática, mas uma vez passado o entusiasmo inicial retomam a perspectiva mais tradicionalista do ensino. É curioso observar a frequência dos termos “computador”, “Internet” e “calculadora” nos actuais programas de Matemática do ensino secundário:

Observando os conteúdos programáticos, não é possível descortinar qualquer razão para que as tecnologias sejam mais referidas no 10º que nos restantes anos, onde estes termos ou desaparecem ou sofrem um corte radical. A equipa de trabalho não sofreu quaisquer alterações, pelo que se deverá afastar qualquer explicação relacionada com diferentes concepções do ensino da Matemática. Eventualmente, poderá ter-se verificado um maior entusiasmo no primeiro ano de trabalho, que se foi perdendo nos seguintes, e por essa razão o programa do 10º ano foi redigido com maior pormenor, traduzindo-se num documento com mais páginas:

A maior extensão do texto do programa do 10º ano justificará que as palavras tenham sido escritas mais vezes, mas mesmo assim não pode deixar de observar-se um entusiasmo momentâneo pelas tecnologias.

A utilização das novas tecnologias parece agravar as desigualdades escolares e sociais

Na impossibilidade de controlo da qualidade do serviço o docente, o ME está a obrigar os professores a cumprirem um horário mais alargado nas escolas. Não são valorizadas experiências em que os professores tirem partido das novas tecnologias, que se generalizadas, alterariam profundamente o quotidiano escolar. Entre os jovens do 3º ciclo e no ensino secundário a percentagem de utilizadores da Internet já se elevava a 63% em 2002, segundo o Inquérito à utilização das tecnologias da informação e da comunicação pela população portuguesa, realizado pela Unidade de Missão Inovação e Conhecimento (http://www.posi.pcm.gov.pt/documentos/pdf/apres8.pdf). O mesmo relatório destaca que “a utilização da Internet se encontra inversamente correlacionada com a idade”. Porém, a não adesão dos docentes à Internet tem implicações diferentes das imputadas aos restantes profissionais, uma vez que a sua opção tem implicações imediatas sobre o quotidiano escolar e o futuro dos estudantes. Se a adesão dos mais jovens é tão significativa – neste momento já em muitas turmas do ensino secundário constituem excepção os alunos que não dispõem de uma ligação à Internet em sua casa - como justificar que a sua utilização não se generalize no ensino? Até quando parecerão ficção científica notícias como a que se apresenta abaixo?

"O meu professor de Matemática está aqui!" Francisco Pereira, 18 anos, está sentado em frente ao computador na sala de estar da sua casa em Linda-a-Velha. Ao fundo, na televisão passa um concurso qualquer. As badaladas do relógio de parede informam que são dez da noite. E Francisco sorri ao perceber que o seu professor acabou de ligar-se à Internet e aparecer no "messenger", um programa de conversação em tempo real que este aluno do ensino secundário e os seus colegas usam para comunicar uns com os outros. Para muitos jovens que nas últimas semanas têm vindo a preparar-se para os exames do 12º ano que amanhã começam, a Net assumiu um papel essencial. E mudou por completo o significado de estudar.
Francisco - Xico é a alcunha que utiliza na rede - ajeita o teclado do computador e começa a escrever: "Boa noite, professor." A resposta à saudação aparece quase de imediato no ecrã: "Precisas de alguma coisa?" O diálogo continua por alguns momentos. Não há dúvidas para tirar esta noite, mas se houvesse Francisco aproveitava, o que nunca aconteceria, diz, se tivesse de agarrar num telefone, por exemplo. A Internet veio facilitar tudo: "Nesta fase dos exames, então, é mesmo muito importante para mim. É uma forma de estudar sempre em grupo."
"Neste momento, uma série de amigos meus estão a estudar e têm o computador ligado na sua secretária. Se algum de nós tiver dúvidas, mandamos uma mensagem: 'Olha, vê lá aí a página tal do manual tal, o exercício x está-me a dar um valor errado'", conta Francisco. Alguém que esteja há-de responder.
Público, 22 de Junho de 2003.

Certamente que os IM’s não resolverão os problemas da Matemática, mas sem dúvida que oferecem um novo ambiente de trabalho cujas potencialidades ainda nem se conhecem em toda a sua extensão. Exige-se do aluno um novo conceito de auto-disciplina, pois sabe-se bem que a utilização da www tem uma componente lúdica que pode reduzir a sua concentração. Porém, para que a Internet seja utilizada como recurso pedagógico pelos alunos, ela terá de ser dominada pelos professores, e estes profissionais têm responsabilidades acrescidas se se problematizar a escola enquanto mecanismo reprodutor de desigualdades escolares e sociais. O contributo da escola para o agravamento das desigualdades sociais não é tema novo em Sociologia, a utilização das novas tecnologias parece agravar o problema, e no nosso país este fenómeno assume ainda maiores proporções. 84 por cento dos utilizadores de Internet em Portugal possuem um nível de instrução superior e apenas 14 por cento não completaram o 12º ano de escolaridade. Uma diferença de 70 pontos percentuais, a maior de toda a UE, que contrasta com a de 11 por cento registada na Lituânia (Eurostat, News Release 143/2005, 10/11/2005 ).

Temos de construir progressivamente uma hierarquia, que distinga os professores com mais experiência e mais competências

Perante as críticas, sujeito a fortes pressões de Bruxelas no sentido de reduzir o défice orçamental, o Governo não deve ter tido grandes dúvidas quando decidiu (em Março de 2005, com Luís Campos e Cunha na pasta das finanças) o termo das mudanças de escalão “automáticas”, assim designadas por não exigirem qualquer trabalho sério aos docentes. Entretanto, em resultado de não se ter controlado o mecanismo de progressão, observa a Ministra da Educação, Maria de Lurdes Rodrigues, nos últimos anos o sistema ficou com "50 por cento dos professores nos últimos três escalões da carreira" (Público, 20/10/2005). Quando muitos já atingiram o nível máximo a que poderiam aspirar, o 10º escalão, certamente que será difícil a tarefa a que a ministra se propõe: "Obviamente que esta situação tem de ser trabalhada, temos de construir progressivamente uma hierarquia, que distinga os professores com mais experiência e mais competências, até para distribuir correctamente as responsabilidades. Neste momento um professor em início da carreira ou no 10º escalão pode estar a exercer exactamente as mesmas funções" (ibidem). Uma hierarquia estritamente formal, que apenas permite assegurar que a remuneração seja diferenciada em função da idade, e dirimir conflitos na distribuição dos horários, constitui um obstáculo ao empenhamento dos docentes na sua carreira, devendo avaliar-se o seu impacto sobre a qualidade do ensino oferecido.

Um professor de Matemática pode obter créditos por frequentar um curso prático de criação de bichos-da-seda

Os jornais e as associações profissionais também criticaram violentamente este sistema de progressão na carreira. Por exemplo, Nuno Crato, professor do ISEG, referiu que “um professor de Matemática pode obter créditos por frequentar um curso prático de criação de bichos-da-seda e um professor de Português pode subir na carreira com práticas de esqui” (Expresso, 7/5/2005). A APM considera que “as acções de formação contínua devem ter uma forte ligação à prática lectiva, sendo preferencialmente centradas nas escolas ou nos territórios educativos e devem ser dadas oportunidades aos professores de Matemática para poder frequentar acções de formação na sua área específica” (APM, 1998:81). O contributo das acções de formação para a melhoria do desempenho dos docentes, porém, será tão desprezível que “a formação contínua como direito/dever de todos os professores não deve estar necessariamente ligada à progressão na carreira” (APM, 1998:83). Esta expressão deixa na dúvida se a formação contínua é um direito ou um dever, o que não ficará por discutir, pelas consequências que tem sobre o investimento dos professores no ensino, e consequentemente sobre os resultados dos estudantes. Quando a APM afirma que esta formação não deve estar (necessariamente) ligada à progressão na carreira, expressa claramente que do seu ponto de vista o contributo destas acções para a valorização profissional dos docentes é nula.

A ausência de relação entre o desempenho e a remuneração conduz os professores a desinvestirem da realização das suas tarefas

A ausência de relação entre o desempenho e a remuneração, é um dos aspectos que tem caracterizado a progressão na carreira docente. Até 2005 vigorou um sistema que permitia aos docentes mudarem de escalão após a realização dos créditos suficientes (1 crédito para cada ano de serviço, obrigava por norma à frequência de 25 horas). Nos termos do Regime Jurídico da Formação Contínua de Professores, ao Conselho Científico-Pedagógico da Formação Contínua compete proceder à acreditação das entidades formadoras e das acções de formação contínua de professores e acompanhar o processo de avaliação do sistema de formação contínua (http://www.ccpfc.uminho.pt). Porém, a utilidade destas acções, frequentemente demasiado genéricas, e muitas vezes sem qualquer relação com os conteúdos leccionados, nunca foi reconhecida pelos professores. Na ausência de mecanismos de avaliação do seu desempenho, a pseudo-avaliação do seu trabalho na escola depende exclusivamente da realização destas acções, que criticam violentamente. Pior. A ausência de relação entre o desempenho e a remuneração conduz os professores a desinvestirem da realização das suas tarefas. Eis as conclusões apresentadas pelo professor Alcino Simões no site onde disponibiliza o seu relatório crítico de actividades (Maio de 2004):

5.1. Não soube mostrar as maravilhas que tenho a certeza ter feito, tanto na minha comunidade escolar como nas de outras regiões (e a minha escola valoriza essencialmente o trabalho interno!).
É assim... Tanto trabalho gratuito (apesar do prazer mútuo) que desempenhei nestes anos e, afinal, parece não ser reconhecido!
5.2. Continuo a considerar que o meu desempenho não tem sido apenas SATISFAZ.
5.3. Tenho vontades de nada mais fazer na docência para além do estritamente necessário.
5.4. Este sistema de avaliação propicia que o empenho educacional apenas é praticado pelo professor que assumiu uma "profissão de fé". Devido a esse sistema de avaliação, são raras estas pessoas.
5.5. Uma escola deveria ficar prestigiada pelas classificações dos seus professores. Até deveria ser a escola a sugerir a alguns dos seus professores para se proporem à avaliação de BOM ou de MUITO BOM. Assim, os gestores de uma escola teriam a possibilidade de exigir um melhor desempenho a estes professores. E os professores assim reconhecidos, esforçar-se-iam para corresponder e manter o seu BOM desempenho para com a escola.
5.6. A avaliação de funcionários públicos (incluindo os professores) deveria ser regular, obrigatória, abrangente, participativa, ponderada, justa, gratificante e pública. O processo de avaliação deveria explicitar os objectivos, que deveriam ser restritos, explícitos, concretos, adaptados e ponderados. Os critérios do processo de avaliação deveriam ser definidos previamente ao início do período da avaliação, tendo os avaliadores a obrigatoriedade de os cumprir. Os resultados da avaliação deveriam incidir sobre o salário do funcionário, tanto para o aumentar como para o diminuir.
A propósito, o caso do empregado Fernando Pessoa deve ser considerado: foi apenas um escriturário SATISFAZ, apesar de nos seus tempos livres desenvolver-se gratuitamente como um escritor MUITO BOM.
5.7. Com este sistema de avaliação: o desenvolvimento do processo educativo não é um investimento para o orçamento do estado, mas a manutenção das rotinas; o ensino não é uma estratégia civilizacional nacional, mas uma obrigatoriedade de presenças; a inovação não é um projecto para fazedores de aprendentes, mas uma raridade fabricada por escritores; a aprendizagem não é potenciada por especialistas na escola, mas depende essencialmente do investimento familiar.
Que nasçam nos políticos e gestores do Sistema de Educação Português as coragens para frequentemente desenvolver e premiar. Que surjam ferramentas legais para promover e patrocinar.
http://www.prof2000.pt/users/folhalcino/ideias/eu/satisfaz.htm

Como poderão estes professores ensinar Matemática?

Os breves posts anteriores não permitem responsabilizar os professores pelo insucesso escolar que se discute. Contudo, são suficientes para compreender que o debate não poderá ser entendido independentemente da sua actividade profissional, dos sistemas de formação inicial, contínua e especializada, das concepções de ensino, dos programas, da sua familiaridade com as tecnologias, do sistema de progressão na carreira, etc. Esta simples enunciação permite constatar a multiplicidade de aspectos susceptíveis de interferir na actividade profissional dos professores. Muitos dos aspectos acima referidos permanecem habitualmente à margem do debate que se trava, pois os actores apenas se referem ao que lhes interessa para defenderem as suas posições. O leitor certamente não esperará que se apresentem as justificações dos diferentes agentes, mas pretende-se que fiquem explícitas algumas das tarefas a realizar para entender a sua argumentação. Entre estas tarefas, refere-se a necessidade de integrar no debate os múltiplos aspectos relevantes que permanecem frequentemente esquecidos. A título de exemplo, referem-se seguidamente alguns desses aspectos.

Crê-se que não valerá a pena perder tempo a discutir os problemas educativos até ao 9º ano, designadamente porque o sistema de formação dos professores permite que se mantenham situação absurdas como a descrita por Marçal Grilo:

Hoje, um jovem pode reprovar no 7º, 8º e 9º ano de escolaridade a Matemática. No 10º ano, pode escolher a área de Humanísticas, pode ir parar a um curso de formação de professores do ensino básico quando entra para o superior e vem depois, a leccionar nos primeiros quatro ou seis anos de escolaridade, onde tem que ensinar álgebra, aritmética,...
Marçal Grilo, em entrevista a Dulce Neto (2001:61)

Como poderão estes professores ensinar Matemática?

Sem o recurso a métodos acelerados de formação, a procura escolar não poderia ser satisfeita

A discussão dos sistemas de formação de professores será necessariamente objecto de problematização, justificando a análise do debate também sob a perspectiva dos formadores de professores. Sem o recurso a métodos acelerados de formação, a procura escolar não poderia ser satisfeita, mas a mudança verificada foi tão rápida que hoje já se verifica excesso de professores. A urgência da formação não terá permitido manter o nível da mesma.

Para mim só há um tipo de formação eficaz, que é a formação em sala de aula, ou seja, quem sabe e quem já fez ficar junto de quem quer aprender e queira fazer. Se eu que já experimentei determinados instrumentos, designadamente a avaliação por portfólio, posso junto com um colega em sala de aula, fazermos em conjunto. Primeiro, os medos são repartidos, por outro lado ele está a vivenciar uma coisa que não é só teórica. Está a experimentar ele próprio também e aí já não tem medo de arriscar no ano seguinte sozinho. Isto, para mim, é que é formação, não é formação com retroprojector que isso não tem efeitos.
Judith Silva, professora de Matemática, técnica do GAVE, entrevistada em Abril de 2003.

É impensável a compreensão do debate desconhecendo o contexto histórico de massificação do ensino observado nas últimas décadas

Recuar ao século XIX não teria grande utilidade para a explicitação do debate na actualidade, visto que a própria distância temporal relativiza a importância dos factos. Porém, é impensável a compreensão do debate desconhecendo o contexto histórico de massificação do ensino observado nas últimas décadas do século XX. Por exemplo, segundo o relatório Matemática 2001, “entre 1980 e 1988, o número total de professores do grupo quase duplicou, passando de 3000 para 5500, aproximadamente” (APM, 1998:9). Este crescimento apenas se justifica pela flexibilização das regras de acesso à carreira, pois “ao longo dos anos 70 e 80, a falta de qualificação profissional de uma larga percentagem de professores era uma característica conhecida do grupo de Matemática, constituindo um dos mais sérios problemas do sistema educativo ao nível da composição do corpo docente” (ibidem). O referido relatório recomenda a rápida extinção do sistema de profissionalização em serviço (APM,1998:81), sem o qual teria sido impossível dispor de docentes que respondessem ao forte acréscimo da procura. Portanto, a massificação do ensino teve consequências no sistema de formação de professores. É indispensável conhecer a sua história recente para compreender muitas das críticas veiculadas pelos especialistas ao ensino da Matemática de hoje. Por exemplo, esta contextualização já oferece pistas para a compreensão dos comentários de muitos professores universitários de Matemática, como Jorge Buescu, do Instituto Superior Técnico:

Operou-se uma espécie de fluidificação do ensino - é tudo mais ou menos. Trata-se de uma abordagem que ganhou terreno nos últimos 15/20 anos e que acabou por permear toda a cultura educativa entre nós. Hoje os programas de Matemática, aquilo que se aprende nesta disciplina, é quase uma caricatura grotesca do que existia há 20 anos.
Operou-se um nivelamento por baixo ao nível dos programas, do que se exige aos alunos, da preparação científica dos professores e até dos próprios manuais. Os erros que tenho encontrado nos manuais! A começar pelo primeiro ciclo. O que tem um efeito a dobrar. Há muitos professores que têm os manuais como principal material para preparar as aulas e se os manuais são maus, têm asneiras, eles acabam a transmitir asneiras.
PÚBLICA, nº 493, 6 de Novembro de 2005.

Um dos argumentos mais populares no debate é o fatalismo

A aceitação social que se verifica para justificar maus resultados escolares em Matemática associando-os à “falta de jeito natural” proporciona um suporte demasiadamente usado como desculpabilização geral (Dinis, 2003:26). Um dos argumentos mais populares no debate é o fatalismo associado às características culturais dos portugueses, justificado pela “tradição”.

Esta “tradição” de insucesso terá a sua fundamentação pois já em 1871 Antero de Quental se lamentava do nosso atraso em Matemática na sua conferência Causas da decadência dos Povos Peninsulares:

Nos últimos dois séculos não produziu a Península um único homem superior, que se possa pôr ao lado dos grandes criadores da ciência moderna: não saiu da Península uma só das grandes descobertas intelectuais, que são a maior obra e a maior honra do espírito moderno. Durante 200 anos de fecunda elaboração, reforma a Europa culta as ciências antigas, cria seis ou sete ciências novas, a anatomia, a fisiologia, a química, a mecânica celeste, o cálculo diferencial, a crítica histórica, a geologia: aparecem os Newton, os Descartes, os Bacon, os Leibniz, os Harvey, os Buffon, os Ducange, os Lavoisier, os Vico - onde está, entre os nomes destes e dos outros verdadeiros heróis da epopeia do pensamento, um nome espanhol ou português? Que nome espanhol ou português se liga à descoberta duma grande lei científica, dum sistema, dum facto capital? A Europa culta engrandeceu-se, nobilitou-se, subiu sobretudo pela ciência: foi sobretudo pela falta de ciência que nós descemos, que nos degradámos, que nos anulámos.
http://www.mat.uc.pt/~jaimecs/hspm/X0029_capIV04.html

"Na maior parte das disciplinas, com mais ou menos marranço, a coisa ainda vai, agora com a Matemática não é de estudo, é de compreensão!..."

"Na maior parte das disciplinas, com mais ou menos marranço, a coisa ainda vai, agora com a Matemática não é de estudo, é de compreensão!..." - diz muita gente. Os mais preguiçosos, em jeito de desculpa para o insucesso, arrumam-na (e aos respectivos compêndios novinhos em folha) na prateleira das disciplinas que se aceita que se deixe de lado. Até porque já o pai, a mãe, a avó, o gato e o piriquito nunca deram nada para a dita... E a justificação do cruzar de braços completa-se com a alegação de que ninguém tem culpa de não ter jeito, expressão sinónima de ser inteligente, porém, bem mais tranquilizadora para os pergaminhos genéticos da família, se os houver (Taveira, 2002).

O debate público em torno do binómio educação/desenvolvimento é um fenómeno recente

A atribuição de classificações escolares negativas a um conjunto relativamente numeroso de estudantes, é um fenómeno educacional e social frequentemente referido na literatura por “insucesso escolar”. As cifras estatísticas sugerem tratar-se de uma realidade de dimensão bastante preocupante, mas simultaneamente muito complexa, com múltiplas causas, profundamente interrelacionadas. A pluralidade de aspectos que deveriam ser contemplados na análise do fenómeno, tornam a expressão redutora e desadequada, porém, justifica-se a sua utilização pela sua familiaridade com o leitor. Cada um dos actores sociais que intervém ou acompanha o processo de ensino-aprendizagem tem, naturalmente, a sua visão do problema, mas a sua explicitação em termos científicos exige a construção ferramentas cognitivas que permitam fundamentar as justificações, ultrapassando a expressão sumária dos diversos pontos de vista.

A imagem do insucesso escolar depende do seu próprio conceito. Definindo-o a partir das taxas de reprovação/retenção nos diversos níveis de escolaridade, terá registado um crescimento acentuado nas últimas décadas, apresentando-se como um fenómeno relativamente novo, acompanhando a igualmente recente massificação do ensino. Porém, se se observar a reduzida escolaridade da população activa portuguesa, comparativamente a outros países da OCDE, encontra-se um fenómeno tradicionalmente explicativo da reduzida produtividade do trabalho. Por exemplo, analisando a percentagem da população activa que tem pelo menos o 9º ano de escolaridade (OCDE, 2003:106), descobre-se Portugal na 26ª posição, ultrapassando apenas o México e a Turquia. Seria fastidioso indicar os restantes 25 países. Não é novidade que Portugal já há 40 ou 20 anos atrás registasse a escolaridade mais reduzida da OCDE, mas é particularmente preocupante verificar que a distância está a aumentar relativamente à generalidade dos outros países.

Independentemente da perspectiva, o insucesso escolar não é um problema apenas dos actores directamente envolvidos: alunos e professores. A sua importância justifica um amplo debate público, colocando a educação no centro da arena política, porque se entende que o nível de escolaridade formal é um factor determinante do crescimento económico e do desenvolvimento social. Sabe-se que o resultado das políticas educativas apenas é observável a longo prazo, mas a urgência com que se procuram soluções nem permite que se avaliem as decisões anteriores, traduzindo-se numa elevada rotação dos Ministros da Educação que inviabiliza um justo julgamento político da generalidade destes. A importância do insucesso escolar no debate político é em si mesmo um fenómeno novo, interessando analisar as diferentes representações em presença, para que o jogo destas não ofusque a própria realidade que as suas ferramentas cognitivas recriam. O debate encontra-se fortemente alicerçado na informação estatística e na racionalidade económica, que responsabilizam o baixo nível de educação formal pela reduzida produtividade do trabalho, pela falta de competitividade das empresas, pelo 27º lugar atribuído a Portugal pelo índice de desenvolvimento humano (PNUD, 2005),... Por exemplo, tornou-se mais imediata a relação entre a educação e o desenvolvimento após o cálculo do IDH , que apenas foi inventado em 1990, como estratégia do PNUD para popularizar os seus relatórios. Os dados mais fiáveis que animam o debate público são produzidos pelas organizações internacionais, designadamente pela ONU e pela OCDE, fundadas no pós-guerra. Apenas se fizeram estas observações para enfatizar que a numerosa informação estatística hoje disponível, é em si mesma um acontecimento recente. Esta informação estatística constitui-se também como a plataforma de pensamento na qual se expressa o debate público, donde se pode concluir que a importância do próprio debate político em torno do binómio educação/desenvolvimento é igualmente recente.